domingo, 24 de junho de 2007

Sobre o Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder

domingo, 17 de junho de 2007

Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar,
Esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.
Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,
porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Manoel Bandeira

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Cantada



"Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safirada
República Dominicana
Olha,você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro em maio
e quase tão bonita quanto a Revolução Cubana"

Ferreira Gullar

domingo, 3 de junho de 2007

“Foi então que levantou a cabeça e fitou o ar com alguma intensidade. É que alguma coisa branda e incidiosa se misturara ao seu sangue, e ela se lembrou de como se falava de amor como de um veneno, e concordou submissa. Era alguma coisa adocicada e cheia de mal estar, que ela, conivente, reconheceu com suavidade suplicada como uma mulher que apertando os dentes reconhece com altivez o primeiro sinal de que a criança vai nascer. Reconheceu, pois, com alegria e impassível resignação, o ritual que se fazia nela. Então suspirou: era a gravidade pela qual esperara a vida inteira. (...) Era alguma coisa que seria amor ou não seria. Caberia a ela, entre milhares de segundos, dar a leve ênfase de que o amor apenas carecia para ser”

(Clarice Lispector, A maçã no escuro)