domingo, 27 de maio de 2007

A castidade com que abria as coxas




A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres
em mim ressuscitados

Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino

Roupa e tempo jaziam pelo chão
E nem restava mais o mundo,
à beira dessa moita orvalhada,
nem destino.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Leituras labiais

Palavras eu coloco na tua boca em silêncio
para dizer tudo o que do amor
possa ser dito num beijo.


Gabriel Di Pierro

sábado, 19 de maio de 2007

EU VIM

Eu não nasci no começo desse século.Eu nasci no plano do eterno.Eu nasci de mil vidas superpostas.Nasci de mil ternuras desdobradas.Eu vim para conhecer o mal e o bem.E para separar o mal e o bem.Eu vim para amar e ser desamado.Eu vim para ignorar os grandes e consolidar os pequenos.Eu não vim construir a minha riqueza.Não vim construir a minha própria riqueza.Mas não vim para destruir a riqueza dos outros.Eu vim para reprimir o choro formidável.Esse choro formidável que as gerações anteriores me transmitiram.Eu vim para experimentar a dúvida e a contradição.E aprendi que é preciso idolatrar a dúvida.
Murilo Mendes
"Fico com medo. Mas o coração bate.O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci.Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser:Eis os limites de minha possibilidade."
CLARICE LISPECTOR

domingo, 13 de maio de 2007

A mulher que rasga as vestes.


Matisse

Adeus, moderados.

Não me agradam esses homens bem fracionados no tempo, cedendo-se amavelmente em todas as ocasiões.E mais também não me agradam os partidários tão vários de toda a moderação.Passo distante dessa gente comedida e moderada, que guarda o vinho 20 anos para bebê-lo mais velho, homens de ferro que só sabem anunciar a mensagem da espera, que aguardam o momento oportuno, que, sempre expelindo relógios, resistem à melhor viagem, que desconhecem as emoções, que sabem apenas sofrer sincronizados às tristezas publicadas nos jornais.Adeus, moderados. Adeus, que sou diferente: compreendo a mulher que rasga as vestes e sinto imensa ternura pelo homem desesperado.

Lupe Cotrim
Ando à procura de espaço para o desenho da vida. Em números me embaraço e perco sempre a medida. Se penso encontrar saída, em vez de abrir compasso, projeto-me num abraço e gero uma despedida. Se volto sobre o meu passo, é já distância perdida. Meu coração, coisa de aço, começa a achar um cansaço esta procura de espaço para o desenho da vida. Já por exausta e descrida não me animo a um breve traço: saudosa do que não faço, do que faço, arrependida.

Cecília Meireles

Uma das insignificâncias do mundo

O Apanhador de Desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.Não gosto das palavras fatigadas de informar.Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo.Entendo bem o sotaque das águas.Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que aviões.Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.Tenho em mim esse atraso de nascença.Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.Tenho abundância de ser feliz por isso.Meu quintal é maior do que o mundo.Sou um apanhador de desperdícios:Amo os restos como as boas moscas.Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.Porque eu não sou da informática:eu sou da invencionática.Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros